Orlando Morais Jr

H uma iluso persistente que permeia nossa poca: a de que a prosperidade material um sinal inequvoco de que Deus aprova nossos caminhos. Abundncia se confunde com bno, desempenho com misso, fluidez com fidelidade. Como se o Criador se expressasse apenas por facilidades e nunca por desertos.

Mas a histria — tanto o que lemos nos livros quanto o que sentimos na carne — mostra o contrrio. Muitos seguiram caminhos repletos de frutos visveis e, ainda assim, se perderam. Outros foram podados com dureza e, ainda assim, floresceram onde ningum viu.

Nem toda porta aberta vem de cima. E nem todo fechamento castigo. H escolhas que rendem lucros e irao, mas operam em desacordo com a alma. H conquistas que nos distanciam de quem somos — e quanto mais avanamos nelas, mais nos sentimos deslocados de nossa prpria histria.

Considere o homem que construiu um nome respeitvel, sustenta a famlia, contribui para a parquia, mas confessa secretamente que sente a vida escapar por entre os dedos. Ou a mulher que, depois de alcanar a estabilidade que todos invejam, acorda todos os dias com uma angstia sem motivo aparente — como se algo essencial estivesse faltando, mas sem nome.

Essa inquietao frequentemente um sinal de que a vocao est sendo ignorada. E a vocao no um sentimento vago, nem uma habilidade proeminente. um chamado silencioso que nos percorre e ordena o que somos em direo ao que deveramos ser. Ela fala atravs da alegria silenciosa que sentimos em certos gestos simples, atravs da luminosidade que nos visita em certas situaes, atravs da paz que surge quando fazemos o que "no traz retorno", mas faz sentido.

A vocao s vezes se revela em um trao quase imperceptvel: o professor que nos comove ao explicar algo aparentemente trivial; o jardineiro que, ao cuidar das plantas, zela pelo silncio ao seu redor; a me que, ao contar histrias para os filhos, redescobre a prpria voz. nesses momentos que o ser toca seu eixo — e tudo se alinha, mesmo que o mundo no perceba.

Mas esse reconhecimento exige purificao. Porque crescemos treinados para buscar o que produz resultados, no o que revela a verdade. E o critrio dominante — “se est dando certo, de Deus” — precisa ser superado. Deus no age para nos agradar, mas para nos santificar.

Por isso, o caminho vocacional nem sempre ser fcil, prtico ou proveitoso. Pode envolver o abandono de uma carreira segura. Pode envolver o desapego de uma imagem construda com esforo. Pode nos levar a territrios internos que evitamos por anos. Mas nesse desconforto inicial que o chamado comea a se tornar claro. A alma se sente estranha porque est voltando para casa.

H quem inicie essa jornada discretamente. O profissional de sucesso que decide ouvir mais e fazer menos. O jovem que interrompe um curso irado para servir em uma comunidade esquecida. O empresrio que, em vez de expandir sua loja, comea a estudar teologia noite. Nada disso impressiona as multides — mas transforma destinos.

A vocao no se trata necessariamente de mudar de profisso. Trata-se de mudar o eixo a partir do qual se vive. A mesma atividade pode ser opressiva quando movida pela vaidade — e libertadora quando aceita como misso. a inteno, a dedicao, a escuta que fazem de uma profisso um caminho espiritual.

No fim das contas, viver a prpria vocao aceitar ser quem se diante de Deus. No autopromoo, mas consentimento. No prazer constante, mas significado profundo. No facilidade, mas fidelidade. E, quando atendida, a vocao nos traz de volta realidade. Torna nossa presena curadora, nossas palavras frutferas, nossa vida um sinal.

Um homem ou mulher assim no precisa convencer ningum. Por onde ele ou ela a, algo se pacifica. Porque sua coerncia com a realidade maior que seu sucesso diante dos outros.

Orlando Morais Jr. jornalista e filsofo