A recente aprovao da Poltica Antimanicomial do Poder Judicirio, por meio da Resoluo n 487/2023 do Conselho Nacional de Justia (CNJ), colocou em xeque prticas ainda comuns em estados como Mato Grosso: manter pessoas em conflito com a lei, que possuem transtornos mentais, sem o tratamento adequado psiquitrico e psicoteraputico. A situao se agrava, segundo a criminloga Vldia Soares, porque alguns desses reeducandos so mantidos em estabelecimentos penais comuns.

Em abril deste ano, oConselho Nacional de Justia (CNJ) validou planos de implementao daPoltica Antimanicomial -impedindo a existncia dos hospitais de custdia - em22 estados, sendo que Mato Grosso est entre os 10 que pretende colocar o plano em prtica at 2026, tendo o ms de dezembro, do referido ano, para concluir a implementao.

CNJ

Para Vldia Soares, a prtica de no fornecer o tratamento adequado uma “violao grave dos direitos humanos” e contradiz com os princpios da reforma psiquitrica brasileira, que desde a dcada de 2000 defende o cuidado em liberdade, com dignidade e cidadania.

“Manter pessoas com transtornos mentais em estabelecimentos penais comuns em Mato Grosso tem gerado impactos significativos, tanto para os indivduos afetados quanto para o sistema prisional como um todo”, afirma.

Uma das medidas previstas pelo CNJ o fechamento dos manicmios judicirios - que no caso de Mato Grosso, trata-se do Hospital Adauto Botelho - e a transferncia de internos para atendimento nos Centros de Ateno Psicossocial (CAPs) do Sistema nico de Sade (SUS). No entanto, Vldia salienta que esse um dos desafios enfrentados pelo Estado para implementao da poltica antimanicomial, sobretudo pela insuficincia de recursos financeiros e humanos destinados Rede de Ateno Psicossocial (RAPS).

Para Vldia, a quantidade insuficiente de CAPS, residncias teraputicas e equipes multiprofissionais compromete a substituio dos manicmios judicirios e alternativas de cuidado em liberdade.

Dados da Secretaria de Estado de Sade (SES) apontam que Mato Grossoconta com 10 leitos masculinose2 leitos femininospara pessoas em conflito com a lei, no Centro Integrado de Assistncia Psicossocial (CIAPS) Adauto Botelho, em Cuiab. Na mesma unidade h 64 leitos psiquitricos destinadosao tratamento de pessoas em sofrimento psquico grave e agudo e32 leitos destinados a usurios de mltiplas substncias psicoativas - todas destinadas ao pblico geral.

A SES citou ainda o Hospital Psiquitrico Paulo de Tarso, em Rondonpolis (a 216 km de Cuiab), possui 82 leitos credenciados pelo Sistema nico de Sade (SUS), voltados ao atendimento de pacientes com transtornos mentais e dependncia qumica, entretanto, no h vagas para pessoas em conflito com a lei.

O publicou, no ano de 2023, os mesmos dados, entretanto, poca, a SES informou que havia 100 vagas no Adauto Botelhopara internaes psiquitricas e 12 vagas parapessoas em conflito com a lei. Aps dois anos no houve aumento e sim diminuio de leitos para o pblico geral e manuteno das vagas para pessoas em conflito com a lei.

Reproduo

No h manicmios, mas h confinamento

Apesar de no possuir manicmios judicirios, Vldia afirma que Mato Grosso recorre a unidades prisionais comuns para custodiar pessoas com transtornos mentais, o que, para a criminloga, resulta em um cenrio alarmante: “A ausncia de tratamento psiquitrico adequado nas unidades prisionais contribui para a cronificao dos transtornos mentais, aumentando o risco de suicdio e agravando o sofrimento psquico dos detentos”, destaca.

Ela tambm aponta que o ambiente carcerrio, com superlotao, falta de higiene, iluminao inadequada e ausncia de materiais bsicos, afeta diretamente a sade mental e fsica dessas pessoas. “Essas condies dificultam a recuperao e a reintegrao social dos indivduos com transtornos mentais”, aponta.

A convivncia forada com outros detentos outro fator crtico. “Pode gerar situaes de risco, tanto para os internos quanto para os profissionais que atuam nas unidades. A falta de discernimento de alguns pacientes pode levar a conflitos e comportamentos imprevisveis, colocando em perigo a segurana de todos”, alerta Vldia.

Criminologia crtica como alternativa

Diante desse quadro, Vldia defende que a criminologia crtica - abordagem que critica a criminologia tradicional - oferece uma lente indispensvel para a transformao do sistema. Esse campo do conhecimento questiona os fundamentos histricos e sociais que sustentam os manicmios judicirios e prope uma abordagem centrada nos direitos humanos e na justia social.

“As instituies manicomiais no tratam, mas segregam os ‘indesejveis’ sociais, especialmente os pobres, negros e aqueles com distrbios mentais”, afirma a criminloga que destaca que o fim dos manicmios em Mato Grosso “no apenas uma questo de sade, mas de direitos humanos, cidadania e justia social”.

Caminhos possveis para Mato Grosso

Para mudar esse cenrio, Vldia aponta como imprescindvel a ampliao e o fortalecimento da Rede de Ateno Psicossocial no estado, com aes como:

• Criao e expanso de CAPS, especialmente os tipos III e AD (lcool e drogas);
• Aumento do nmero de residncias teraputicas;
• Implantao de leitos de sade mental em hospitais gerais;
• Fortalecimento das equipes de ateno bsica com e especializado em sade mental.
  
  

Alm disso, ela sugere programas de desinstitucionalizao gradual e assistida, com acompanhamento psicossocial, insero no mercado de trabalho e o moradia, alm de planos teraputicos singulares para cada pessoa em processo de desinternao.

Arquivo pessoal

A criminloga Vldia Soares

O papel do Judicirio mato-grossense

Em consonncia com a poltica nacional, o Tribunal de Justia de Mato Grosso (TJMT) criou o Comit Estadual de Polticas Penais (CEPP), que dever coordenar as aes relacionadas poltica antimanicomial. O TJMT tambm tem participado de iniciativas nacionais, como o Plano “Pena Justa”, que busca melhorar a situao das pessoas privadas de liberdade, especialmente aquelas com transtornos mentais.

Entretanto, para Vldia, as mudanas exigem mais do que normativas: “ preciso vontade poltica, financiamento adequado, articulao intersetorial e escuta ativa dos usurios”.

A criminloga aponta experincias que podem inspirar Mato Grosso. Um dos exemplos nacionais Campinas (SP), referncia na implantao da Reforma Psiquitrica, que fechou seu hospital psiquitrico municipal e criou uma rede robusta de CAPS, alm de residncias teraputicas, consultrios de rua e centros de convivncia. “Campinas mostra que possvel superar o modelo manicomial com base em polticas pblicas firmes, vontade poltica e protagonismo dos usurios”, destaca.

Vldia enfatiza que a Reforma Psiquitrica e a poltica antimanicomial so mais do que mudanas istrativas: “ uma revoluo silenciosa em defesa da dignidade, da liberdade e da vida. Rompe os muros dos manicmios, mas tambm questiona os muros simblicos que separam ‘ns’ dos ‘outros’, os considerados loucos, perigosos ou incapazes”.

E conclui: “Que nunca mais se repitam os horrores do confinamento em nome do ‘tratamento’. Avancemos na direo de uma sade mental pblica, antimanicomial e transformadora”.