Christiany Fonseca

“Eu sou mais a favor do incesto do que da pedofilia. Porque a criana vai reclamar pra quem? Pro pai? Ele tava junto.”

“O cara deixou assim: ‘Sou gordo! Adoro comer e no gosto de fazer exerccio. Como vou emagrecer?’ Pegando AIDS! Voc no adora comer de tudo? Sai comendo gay sem camisinha! Uma hora vai dar certo!”

Essas so falas literais do humorista Lo Lins. Esto gravadas em vdeo. No so interpretaes, no so cortes maliciosos. So piadas, se que ainda podemos chamar assim, feitas diante de um pblico que riu. Gargalhou.

Agora, aps ser condenado pela Justia, ele aparece num vdeo com cara sria e tom messinico para dizer: “Se rir virou crime, o silncio virou regra.”

A frase de efeito rpido e marketing certeiro ganhou fora entre seus defensores, que a repetem como se fosse argumento jurdico. bonita. Daria at para estampar em camiseta. E talvez seja esse o problema: a capacidade de transformar slogans em escudos para o que deveria ser apenas vergonha.

Mas o “silncio” ao qual ele se refere, esse silncio performtico, de quem diz no poder mais brincar com nada, no o mesmo silncio que acompanha quem foi violentado pelo prprio pai e ouviu isso virar piada em rede social. No o silncio de quem vive com AIDS e escutou o prprio corpo virar metfora para castigo. No o silncio das crianas abusadas que, de fato, no tinham para quem reclamar, nem voz, nem palco, nem plateia.

Esse silncio, o real, o histrico, o que acompanha os invisveis, esse nunca virou regra. Sempre foi. E talvez o riso que ele julga estar sendo censurado seja, na verdade, s o eco de uma liberdade que nunca foi sua, porque sempre esteve ocupando o espao de quem no podia nem respirar.

No entrarei aqui no mrito da condenao. Nem quanto pena, nem quanto multa. Lo Lins tem direito ao contraditrio, ampla defesa e ao recurso como qualquer cidado em um Estado democrtico. E como no sou jurista, no cabe a mim julgar a sentena.

Mas voltemos ao ponto: o problema no um comediante ser punido. O problema imaginar que rir do sofrimento de quem mal conseguiu sobreviver exerccio de arte. No . covardia com microfone.

O socilogo Pierre Bourdieu afirmou literalmente: “A fora da palavra depende da posio daquele que a profere.”. Ou seja: no qualquer fala que tem o mesmo peso. Quem ocupa uma posio de prestgio, com plateia, palco, cmera e legitimidade simblica, tem o poder de reforar estigmas ou desafiar estruturas de dominao. E quando essa posio privilegiada usada para zombar de quem luta diariamente para no desaparecer, o que vemos no transgresso, s o elo mais esperto de uma corrente covarde.

Mas a gente segue ouvindo os mantras de sempre: “A sociedade est chata.”, “Agora tudo mimimi.”, “No pode mais brincar com nada.”, “Tudo virou preconceito.” Clichs de quem nunca foi perseguido por ser quem . De quem nunca teve que explicar sua existncia. De quem nunca virou meme por viver ou por sobreviver.

E antes que algum diga que “ s humor cido”, convm lembrar: humor cido que ri da menina estuprada pelo prprio pai no cido — sal esfregado numa ferida que nunca cicatrizou. a enunciao de uma tragdia. transformar trauma em aplauso. transformar sobrevivncia em risada final.

A liberdade de expresso constitucional. Est no artigo 5 da Constituio Federal. Mas tambm constitucional o direito dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do Estado brasileiro, previsto no artigo 1. E no h dignidade possvel quando se transforma a dor em espetculo.

Defender o direito de falar no pode significar compactuar com o contedo de tudo o que dito. Porque existe uma diferena brutal entre fazer rir e fazer rir s custas de quem nunca pde rir de si mesmo. Usar a liberdade de expresso para perpetuar o sofrimento de quem carrega cicatrizes no coragem. crueldade transmitida em alta definio.

Aplaudir esse tipo de humor contribuir para que a dor dos outros siga sendo um produto. Uma mercadoria convertida em riso rpido, em clique, em monetizao, em lucro. pactuar com a ideia de que o palco est sempre aberto, desde que o alvo continue sendo quem nunca teve defesa.

E se voc ainda insiste que o mundo est chato, que tudo virou drama, que hoje tudo di demais. Talvez esteja apenas na hora de itir o que voc sempre soube, mas nunca quis dizer em voz alta: VOC NUNCA FOI O BRINQUEDO.

Nunca teve seu corpo ou sua histria oferecidos como sacrifcio para que outros se divertissem. Nunca precisou engolir o choro enquanto a plateia gargalhava. E fcil achar graa quando nunca foi voc o motivo da piada.

No se trata de censura. Trata-se de responsabilidade. De compreender que o humor pode ser provocador, mas nunca desumano. Que a arte pode e deve ser ousada, mas no pode mutilar. Que o microfone um direito, mas tambm um dever.

E, sinceramente? Se pra fazer algum rir voc precisa esmagar quem j est no cho, ento a nica piada nessa histria a ideia de que isso humor.

Se no acredita, experimente ser o alvo. Talvez a o “humor” perca a graa.

Christiany Fonseca professora efetiva no IFMT, Doutora em Sociologia e Cientista Poltica